O início

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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

MInha Bisa que Voa

Marina, minha mãe contou que você perdeu um dos seus avós.


Agora eu já consigo entender que, quando a minha mãe fala que alguém "perdeu" outra pessoa, não é igual a perder um lápis da escola. Agora eu entendo que perder pode ser muito mais complicado do que isso. Parece que, quando se perde uma pessoa, é muito mais difícil de achar do que o lápis na bagunça da minha gaveta.


Por isso, resolvi lhe contar uma história. É sobre a minha bisavó. E eu sei que você tem uma bisavó muito especial, mas não sei se é mais do que a minha não.


Quando eu ainda era muito pequeno, eu achava que Bisavó era o nome de uma das minhas avós. Não é que eu fosse bobinho não, eu só era um bebê, mas já era cheio de pensamentos. Eu não conhecia nenhuma outra tal de Bisavó, assim, pensava, era somente um nome estranho dado a uma pessoa.


Quando entrei na escola, a professora, um dia, pediu para falarmos sobre os nossos avós. E eu comecei logo a contar sobre a minha avó chamada Bisavó, que era a mais linda e amorosa de todas. Contei como ela fazia bolinhos deliciosos para mim, como era gostoso o seu colinho e como eu percebia que todas as pessoas se sentiam felizes quando ela chegava.


Na saída,  fui chamado:
"- V.P., a diretora quer conversar com você e com sua mãe."


Na sala da diretora, entendi que todo mundo teve ou tem uma bisavó, que mesmo gente muito ruim teve bisavó, porque, simplesmente, as bisavós são as mães dos nossos avós. Fiquei horrorizado com  fato de  ninguém nunca ter me dito isso antes. Minha mãe ficou horrorizada com o fato de eu não ter percebido isso antes. E a diretora, bem, não sei muito o que ela achou, porque, da hora em que mamãe ofereceu os biscoitos da Bisavó, ela não parou mais de comer e não falou mais nada.


Fiquei muito orgulhoso por ter uma bisavó, artigo de luxo que não se vendia nem se trocava, que tinha sempre um beijo e um perdão na ponta da língua. Os meus amigos achavam que ela era um tanto quanto velhinha, nem conseguia jogar Playstation ou futebol, mas, no fim do ano, no Natal, o pedido mais comum na bota pendurada na parede da sala foi "eu quero uma bisavó".


O que eles não podiam imaginar é que ela tinha um segredo que carregava consigo desde os 5 anos de idade. Na sua infância,  havia alguns passarinhos presos em gaiolas no jardim de casa. Eram lindos e tinham um canto maravilhoso. Minha bisavó ficava confusa quanto aos seus sentimentos sobre os pássaros. Adorava tê-los ali, mas, ao mesmo tempo, tinha vontade de ver um vôo longo e verdadeiro.  Com o coração apertado, um dia, ela abriu a gaiola e soltou todos eles. Sentiu-se feliz por apenas poucos minutos, até ser denunciada aos pais, seguindo-se um castigo de dias e dias sem brincadeiras.


Algumas noites depois, um passarinho pousou na sua janela e lhe bicou o dedo. Sangrou um pouco e sentiu náuseas, uma vontade de vomitar que só passou depois de um chá tenebroso de boldo feito pela mãe.


Daquela noite em diante, em todos os seus sonhos, minha bisavó voava. No começo, ela achava que eram apenas sonhos. Era um pouco medrosa, não conseguia passar além do quarteirão. Aos 15 anos, já conhecia todas a cidade colorida. Aos 20, numa postura idealista, resolveu conhecer áreas mais afastadas, um "retrato em preto-e-branco" do seu lugar.


Em alguns desses vôos, tentou se aproximar das pessoas insones através das janelas dos apartamentos, mas desistiu quando se deu conta de que tinha se transformado em uma "assombração".


Minha bisavó cresceu, casou, teve filhos e ninguém nunca soube disso.


Até que eu nasci. Foi amor à primeira vista. Minha bisavó amada era companheira para todos os momentos.


Em uma das nossas noites estreladas na praia, enquanto eu tentava entender as constelações, ela falou baixinho: "- V., meu neto, você sabia que eu vôo?" Eu dei uma gargalhada, lembrei-me de uma amiga da minha mãe que sempre me inventava estórias sem pé nem cabeça e achei que a minha bisavó estava no mesmo caminho.


Foi quando ela me puxou pela mão, arrastando minha barriga na grama, com a cadela latindo e correndo atrás. Aos poucos, fui-me sentindo leve. Eu não pesava nada. Minha cabeça não tinha pensamentos para pesar. Éramos só nós dois e uma imensa sensação de liberdade.


Durante cerca de 3 anos, fizemos passeios noturnos todas as semanas. Mas, estranhamente, durante o dia, não conversávamos sobre isso. Era o nosso segredo tão secreto, tão secreto, que até o ar poderia fofocar para os outros se falássemos sobre ele.


Conhecemos tantos lugares especiais, que poderia passar dias e dias escrevendo sobre eles.


Mas, o que eu quero lhe contar mesmo é que, um dia, minha bisavó ficou doente. Foi para o hospital e não voltou mais. Até hoje eu não entendo o que aconteceu com ela, não sei onde está, não sei por que  teve que ir. À noite, não tentei mais voar desde então.


Esse era o nosso segredo. Agora eu compartilho com você, Marina. Porque você tem uma bisavó.  E ainda pode voar com ela. Ou descobrir um outro tipo de segredo que ninguém mais sabe sobre ela.


Mesmo que eu tenha muita saudade, sinto sempre uma felicidade imensa ao pensar nela por tudo que vivemos. E sei que ela, onde estiver, também sente isso.


Por isso, Marina, aproveite as pessoas que você pode pegar e apertar e beijar e amassar, porque, no fim, todas elas um diam voam.


Um beijo do seu amigo V.P.